15 maio 2008

BARRANCOS E A GUERRA CIVIL DE ESPANHA




A Guerra Civil de Espanha no concelho de Barrancos

A terrífica guerra fratricida que marca a vida da Espanha entre 1936 e 1939 é, indubitavelmente, um acontecimento horrível que marca igualmente o nosso país e, em particular, os territórios que definem a fronteira entre os dois países.

Miguel Rego


Quando em meados de Fevereiro de 1936 a Esquerda Republicana ganha as eleições por menos de 500 000 votos (4,5 milhões contra 4 milhões de votos dos partido de direita, não levando em conta os votos dos partidos radicais que rondaram o meio milhão), a Espanha torna-se um país bicéfalo e a abrir as portas a um conflito armado. O país tradicionalista e religioso não aceitou a derrota e a 18 de Julho, a partir das Canárias, o General Franco apela à sublevação “nacionalista” que o levará até ao norte de África onde inicia o Alzamiento (o levantamento militar) que o perpetuará no poder durante 30 anos.



O conflito dura até 1939, transformando-se num campo de ensaios industriais e tecnológicos com fins militares, que servirá em particular para a Alemanha nazi preparar a II Guerra Mundial. O bombardeamento de Guernica, imortalizado por Picasso, é um dos mais violentos e mais paradigmáticos exemplos deste conflito sem regras em que se transformou esta guerra.

Portugal viveu-a como se jogasse aí o seu futuro e, em particular, o futuro político do Estado Novo e do seu chefe António de Oliveira Salazar. Na realidade, o comportamento neutral que se exigia a um país como Portugal, e que tinha sido várias vezes pedido pela Sociedade das Nações, pois o novo Governo Republicano de Espanha havia sido legitimado pelo processo eleitoral legal e democrático de 16 de Fevereiro de 1936, nunca aconteceu. Portugal apoiou desde cedo a rebelião militar Nacionalista que se instala em Sevilha e, a partir daí, espalha o terror e a violência a todo o país.

Naquela que se pensava ser uma guerra rápida, as tropas marroquinas chefiadas por Franco, procuram chegar a Madrid através de Badajoz e Mérida, ficando com a retaguarda salvaguardada e defendida pelos seus aliados portugueses. A fronteira foi então o palco privilegiado do conflito. Não só pela proximidade da guerra, cujos primeiros passos se dão junto ao território português, mas também por ser este o destino de fuga de todos aqueles que abalavam do medo e da violência do conflito armado.



Pela sua localização geográfica, o concelho de Barrancos e, em particular, a Herdade da Coitadinha e as Russianas, uma e outra propriedade da família Fialho, encheram-se de fugitivos provenientes de Encinasola, Aroche, Higuera la Real, Fregenal de la Sierra, Valência del Mombuey, Oliva de la Frontera, Cala, Zafra, Zahinos, Almendro, Fuente de Cantos ou Segura de León, entre outras.

Com uma facilidade inusitada, os falangistas rapidamente conquistam os territórios pobres desta região, depois da sua entrada em Badajoz a 15 de Agosto. Começam os mais terríficos atentados à vida humana relatados por alguns jornalistas que acompanharam a evolução do conflito, entre os quais o português Mário Neves, repórter do Diário de Lisboa, provavelmente o primeiro jornalista a entrar na cidade com as tropas nacionalistas.

Paulo Barriga, no seu extraordinário trabalho “Campos de Concentração – O envolvimento português na Guerra Civil de Espanha”, editado pela Câmara Municipal de Barrancos, em 1999, dá conta de alguns relatos recolhidos na zona de Barrancos e que demonstram a violência que esteve imanente à evolução conquistadora das tropas de Franco. Francisco P., na altura com 75 anos, afirmou que as tropas falangistas às mulheres cortavam o cabelo e os seios, davam-lhes purgantes e passeavam-nas pelas ruas. Aos homens levavam-nos para os cemitérios e fuzilavam-nos”. Maria B. afirma que o purgante era feito “com pepino picado misturado com óleo de rícino. Ataram-lhes as saias à cintura, raparam-lhes a cabeça, deixando apenas uma mecha de cabelo (monha) onde prendiam uma fita encarnada. Depois passearam-nas pelas ruas a cantarem o hino da Falange”.



Os relatos sucedem-se e cada um mais violento que o outro. Justificam-se as fugas, o terror, o medo que avassala as gentes esfomeadas das localidades fronteiriças. Os que podem fogem para Portugal. O território de Barrancos, onde a língua não é barreira e onde vivem muitos amigos e familiares destas gentes raianas, começa a ser o destino e a esperança para muitos dos fugitivos.

A fronteira é agora um local ideal para as tropas falangistas capturarem “rojos” (como então se identificavam todos aqueles que defendiam a vitória da Esquerda nas eleições) e é ao longo da fronteira portuguesa que se repartem milhares de tropas com o intuito único de capturarem todos aqueles que andavam em fuga.



Mas as gentes de Barrancos abriram os braços aos fugitivos, alguns familiares e amigos, no intuito de minorar a fome a todos eles e de dar tempo para que as tropas saíssem dali e cada um pudesse voltar aos seus lares. “São às centenas os relatos” que Paulo Barriga procurou obter destes momentos de solidariedade e que demonstram o espírito solidário que norteou o comportamento destas gentes raianas. “António M., 75 anos, recordava que: durante a guerra civil, éramos nós ainda pequenos, os meus pais estavam no campo. Um dia apareceu um homem fugido da guerra e os meus pais esconderam-no num monte de palha a ali permaneceu durante 40 dias. Só de noite é que nós lhe levávamos comida”.

Entretanto, o estado português envia para a zona da fronteira reforços militares, com o receio de, na avalanche, alguns revolucionários portugueses procurarem derrubar o Estado Novo. São efectuadas batidas no sentido de precaver a existência de focos de revolta, mas as tropas portuguesas só encontram gente assustada, mulheres, crianças, velhos. O principal responsável pelo controlo desta fronteira é o Tenente Seixas, do Posto de Safara da Guarda-fiscal.




Entre Agosto e Outubro de 1936, o responsável militar procura minorar a violência contra os foragidos e vai tentando salvaguardar a segurança daqueles que estão sob a sua alçada das mãos dos falangistas que por todos os meios tentam apanhar o maior número possível de “republicanos e rojos”. Sem grandes condições para manter os grupos separados, são criados dois “campos de concentração” (talvez o melhor termo seja o de campo de refugiados), onde se concentram mais de mil espanhóis. Os locais são a Herdade da Coitadinha, a cerca de 60 metros do monte, a montante do Poço da Ferradura, e na Almofadinha, junto à Choça do Sardinheiro. Os números exactos são de 1025 pessoas, aquelas que serão transferidas a partir de 8 de Outubro em camionetas para Moura e Beja e, finalmente, a partir de Lisboa, onde no navio Niassa chegarão ao Porto republicano de Tarragona, fugindo desta forma à fúria nacionalista que à época controlava toda a zona.

Os relatos da altura falam do apoio dado em Beja pelas populações que forneceram água e víveres. E dos dois partos efectuados em Moura.



A Herdade da Coitadinha vê-se desta forma associada à Guerra Civil de Espanha pela existência de um Campo de Concentração (talvez mais correcto seja a utilização do termo Campo de Refugiados), pela forma como todos aqueles que ali se encontravam, que funcionou durante quase três meses. A solidariedade manifestava-se pela alimentação que era fornecida, tanto pelos barranquenhos e, em particular, pelos proprietários, como pelo Estado português, pelas roupas que eram doadas, em particular às crianças, para além da segurança que estava imanente à sua presença ali.

O campo era uma estrutura muito rudimentar em que uma das poucas construções efectuadas foi uma espécie de casa de banho dividida em duas partes, feita em chapas de zinco e troncos de azinheira, separando desta forma a área de utilização de mulheres e homens.



Acoitados entre estevas e azinheiras, os refugiados viviam protegidos pela Brigada Fiscal de Safara, que para ali tinha sido destacada para proteger a zona da fronteira, bastante povoada do lado espanhol, e muito acicatada pelos militares falangistas que, quase sempre não faziam prisioneiros, mas mortos.

Apesar de pouco divulgada esta estrutura marca bastante a memória da população de Barrancos, uma estrutura que tem ainda hoje como única referência física o Poço da Ferradura, e de onde se abasteciam os cerca de setecentos refugiados fugidos à violência das tropas que ocuparam as povoações espanholas da região de Barrancos.



Na memória, serve sobretudo a coragem do Tenente Seixas que, desobedecendo aos seus superiores hierárquicos, assumiu a segurança de todos os espanhóis em fuga que entendiam ficar sobre o seu controlo e viu-se por isso castigado sendo compulsivamente reformado.

In Parque de Natureza de Noudar

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